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quinta-feira, 17 de março de 2011




Govinda pasmou-se, mas, atraído por sua grande afeição e por algum pressentimento, obedeceu ao desejo de Sidarta. 

Achegando-se a ele, imprimiu-lhe os lábios na fronte. E nesse instante aconteceu-lhe qualquer coisa singular. 

Enquanto os seus pensamentos ainda se detinham nas palavras estranhas, proferidas por Sidarta; 
enquanto seu espírito se esforçava, relutante e improficuamente, por eliminar o tempo e 
por representar-se a unidade de Nirvana e Sansara, enquanto no seu íntimo certo desdém pelas opiniões 
do amigo se debatiam com irrestrita ternura e reverência, deu-se com ele o seguinte fenômeno:

Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro...



Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e todavia davam a impressão de estar presentes simultâneamente, rostos esses que a cada instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta. 

Via a cabeça de um peixe, uma carpa, com a boca semi-aberta em infinita dor, peixe agonizante, de 
olhos vidrados...

Via o rostinho de uma criança recém-nascida, vermelho, enrugado, a ponto de chorar...

Via a fisionomia de um assassino, no momento em que varava com a faca o corpo de sua vítima e, ao mesmo tempo, via esse criminoso a ajoelhar-se, algemado, para que o algoz o decapitasse com um só golpe de terçado...

Via os corpos desnudos de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates de desvairado amor... 

Via cadáveres prostrados, imóveis, gélidos, vazios...

Via cabeças de animais, de javalis, crocodilos, elefantes, touros, aves... 

Via divindades, Krishna, Agni... 

Via todos esses vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada qual a acudir o outro, a amá-la, a odiá-lo, a destruí-la, a parí-Ia de novo.





Cada qual expressava o desejo de morrer, era apaixonada e dolorosa a profissão de efemeridade e, no entanto, não morria, apenas se modificava, renascia uma e outra vez, tomava aspectos sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre uma e outra configuração. 

E todos esses rostos repousavam, flutuavam, geravam-se mutuamente, esvaíam-se e confundiam-se. 

Mas por cima deles, sem exceção, estendia-se uma camada fininha, irreal e todavia existente, qual tênue chapa de vidro ou de gelo, camada transparente, casca, molde, máscara de água. 

Pois, essa máscara morria, e essa máscara era o rosto risonho de Sidarta, que ele, Govinda, nesse momento, tocava com os lábios. E Govinda percebeu que esse sorriso da máscara, o sorriso da unidade acima do fluxo das aparências, o sorriso da simultaneidade muito além do sem-número de nascimentos e mortes, o sorriso de Sidarta, era idêntico àquele sorriso calmo, delicado, indevassável, talvez bondoso talvez irônico, de Gotama, o Buda, tal como ele próprio o observara centenas de vezes com profundo respeito. Era assim - Govinda o sabia - que sorriam os seres perfeitos.




Tendo perdido a noção do tempo, já não sabendo se aquela visão durava um segundo ou um século, ignorando se já existiam Sidarta, Gotama, o eu e o tu, com as entranhas como que atravessadas por uma seta divina, cuja ferida tivesse doce sabor, com a alma enfeitiçada e confusa, detinha-se Govinda por mais alguns instantes. Inclinava-se por sobre o rosto plácido de Sidarta, no qual vinha de depositar um beijo, e que acabava de ser o cenário de todas aquelas formas, evoluções e existências. 

O semblante não se modificara, depois que, sob a sua superfície, tornara a fechar-se o abismo da infinita multiplicidade. 

Sorria silenciosamente, suavemente, ternamente, talvez com bondade, talvez com ironia, assim como outrora sorrira o Sublime...






               Extraido do Livro Sidharta - Herman Hesse..  By Luiz Rodrigues

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