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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

 

O poder público e a TV

A omissão do poder público

O setor de políticas de comunicação se tem caracterizado, infelizmente, por uma inquietante omissão do poder público. Melhor dizendo, enquanto historicamente o Ministério das Comunicações lidava com a televisão e o rádio, mas de um ponto de vista eminentemente técnico (e discretamente clientelista, já que só após a Constituição de 1988 melhoraram os critérios de concessão, antes fartamente usados como moeda de troca política), as áreas de educação e cultura pouco tiveram a dizer a respeito, exceto no campo de suas emissoras específicas, de escassa audiência. Assim, quanto ao conteúdo da programação e em especial quanto a seu compromisso com valores democráticos, o poder público pouco tem efetuado, ficando as poucas iniciativas positivas e as muitas duvidosas ao exclusivo arbítrio das emissoras.

Isso é particularmente sério, porque a grande agência pela qual a enorme maioria da população brasileira tem acesso à cultura – além, é claro, da família e das religiões no tocante a seus entusiastas – são as comunicações de massa. Ora, o fato de não existir uma política pública valorizando essa área implica que reinem os imperativos de mercado, havendo poucos fatores a moderá-los. Curiosamente, um desses fatores moderadores são as convicções pessoais ou grupais – geralmente religiosas – dos proprietários das redes de TV ou rádio, ou seja, um condicionante ético pertencente a uma esfera, em princípio, privada; mas mesmo essas crenças andaram perdendo o peso, na medida em que a batalha pelos índices de audiência se tornou áspera, e levou até mesmo algumas emissoras evangélicas a reduzirem as restrições morais que tinham.

Em suma, pesa muito pouco a dimensão pública no uso dos meios de comunicação que, justamente, têm maior alcance público.

Há razões para tal omissão. Uma diz respeito ao peso do ideário liberal no tocante aos meios de comunicação. A queda da ditadura militar levou a opinião pública brasileira culta e cultivada, ou seja, aquela que tem maior acesso à imprensa dita de qualidade, aos teatros, às exposições de arte, a mostrar-se decididamente oposta a qualquer modalidade de censura. Assim, a Constituição de 1988, depois de declarar, no caput de seu art. 220, que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, acrescenta, em seu parágrafo 2.º, que “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. O fraseado é impreciso, e mesmo pouco feliz, porque – se é compreensível que a censura opere por alegações de natureza política, ideológica, e ainda religiosa ou moral, ou seja, que a política, a ideologia, a religião e a moral armem o sujeito que censure – não é compreensível que ele se arme de elementos artísticos. A arte costuma ser objeto ou alvo da censura, não sua natureza. Por conseguinte, uma censura de natureza artística é uma expressão sem sentido.

Mas, se a letra da lei pode não ser muito feliz (e poderia ser entendida, ao pé da letra, como significando que nenhuma ressalva de ordem artística poderia ser oposta a qualquer obra, como por exemplo, recusando-a – por argumentos estritamente estéticos – para uma exposição), o seu espírito é muito claro. O que quer que se alegue em seu favor sejam argumentos religiosos, políticos ou mesmo de bom gosto, a censura está proibida. Isso não impede, obviamente, a ação dos tribunais, punindo a posteriori quem tenha ofendido outrem, ou mesmo impedindo a exibição de símbolos ou a publicação de elementos considerados ofensivos (impedimento este que já é mais polêmico, mas não se confunde o papel do Judiciário nesse tocante com o que seria, até a Constituição de 1988, o de um Poder Executivo que se arrogava a tutela da nação.

A doutrina dominante assim facilita deixar as mãos livres aos donos das emissoras, detentores de grande poder que trocam, em período eleitoral, com aqueles que estão no poder político. Poderia muito bem haver iniciativas no âmbito legislativo promovendo, por exemplo, uma efetiva regionalização da programação televisiva, ou uma desconcentração da mesma – obrigando, nos termos da Constituição (art. 221, inciso II, in fine), cada emissora a comprar de produtoras independentes um porcentual de seu tempo de antena. Poder-se-ia também determinar um tempo mínimo de jornais televisivos, assegurado o pluralismo dos mesmos. Poder-se-ia instituir um conselho ético para a comunicação de massas, ou vários conselhos. Nada disso, que defenderia os direitos do público, foi, porém, realizado, ou sequer proposto com firmeza pelo Executivo. Evidentemente, como várias dessas exigências seriam qualitativas e não apenas quantitativas, precisaria haver séria discussão antes de sua adoção e implementação, mas o significativo é que nem se cogite isso.

Num projeto que discute Cultura e democracia, minha visão é que a TV brasileira cumpre papel demótico, e não democrático. Retiramos da palavra democracia o étimo cracia, que indica poder, e assim indicamos que o papel do demos, ou povo, na televisão e talvez na sociedade brasileira não é o de quem tenha ou possa ter poder, mas o de quem é objeto e alvo do poder. Não há sequer esboço de dar poder, dar autoridade ao povo pela telinha; nem mesmo indiretamente se cogita tornar-se o povo autor da programação televisiva ou de seu destino político; e aqui entendo autor em qualquer dos sentidos que possa assumir, isto é, como quem elabora ou como quem assina.

Há outro ponto a salientar. Se a filosofia tem seu papel em nosso mundo, é porque de algum modo ela pode ser uma caixa de ferramentas, como dizia Nietzsche: ela pode servir para pensar o que vivemos, o que realizamos, o que fracassamos. Ora, isso implica uma necessidade de medir forças, constantemente, entre a teoria e as práticas. Temos em nossas mentes teorias de alta qualidade, mas nem sempre elas podem ser impostas, tais e quais, aos objetos que povoam nosso mundo – e falo aqui dos objetos imaginários, não dos empíricos, falo daqueles que povoam nossa imaginação e forjam nossa ação, para além da banalidade cotidiana. Esse ponto se agrava no caso do Brasil e do Terceiro Mundo em geral, onde se costuma importar doutrinas prontas, que são aplicadas mecanicamente às questões, sem se levantar a questão de sua pertinência. Continuo considerando que o grande desafio para pensarmos a sociedade é esse: como usar da melhor teoria para refletir sobre nossos elos humanos e sociais, e como prestar atenção nestes últimos, também, para repensar uma teoria que em certa medida, pelo menos, foi formada para conhecer e construir um mundo que não é o nosso.

Daí, concluo: nada mais importante, hoje, para quem quer fazer política e questionar com argumentos o uso da TV em nosso país, do que, passados os anos de aprendizado com os grandes autores, debruçar-se sobre os sinais de nossos tempos, como se fossem pequenos atos falhos que um psicanalista tortura e acaricia, odeia e ama. Há toda uma linhagem da filosofia moderna e contemporânea, de excelente qualidade, que apesar de respeitada não é a mais estudada (penso em Montaigne, Pascal, Nietzsche e tantos outros), que tem em comum agarrar o pequeno, o detalhe, a falha, e a partir dele pensar. Não é pensar pela porta grandiosa, a do cânone, a do registro solene; é pensar pela porta vadia, pela exceção, pelo que é torto, pelo que foge ao cânone. Este, o caminho.

1 Comentários:

  • Augusto Cordeiro, meu amigo querido e talentoso!!!!
    Parabéns pela brilhante matéria , parabnes pela escoha do tema, parabens por mais uma vez estar aqui conosco!!!! Bjjjjjjjjjjjjjjjjjjjs
    Ana Kaye

    Por Anonymous Anônimo, às 21 de outubro de 2010 às 17:26  

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